A rachadinha de R$ 2 milhões

Itaperuna 30 de outubro de 2021

Por anos, o senador ficou com salários de seis assessoras do gabinete. Elas abriam conta no banco, entregavam o cartão e recebiam apenas parte do dinheiro

Marina, Lilian, Erica, Larissa, Jessyca e Adriana são moradoras da periferia do Distrito Federal, pobres, desempregadas e personagens de uma ignóbil trapaça. As seis foram contratadas como assessoras.

As seis foram contratadas como assessoras do senador Davi Alcolumbre (DEM-AP) em Brasília, mas nunca trabalharam. As seis tinham vencimentos que variavam de 4 000 a 14 000 reais por mês, mas não receberiam esse dinheiro de forma integral. As seis revelam uma história que, na melhor das hipóteses, vai constranger o Congresso Nacional como um todo e o parlamentar amapaense em particular.

Até o início deste ano, Alcolumbre presidiu o Senado e atualmente comanda a poderosa Comissão de Constituição e Justiça. Durante muito tempo, ele empregou em seu gabinete mulheres, cuja única função

era servir como instrumento de um conhecido mecanismo de desvio de recursos públicos. Admitidas, elas abriam uma conta no banco, entregavam o cartão e a senha a uma pessoa da confiança do senador e,

em troca, ganhavam uma pequena gratificação. Salários, benefícios e verbas rescisórias a que elas teriam direito não ficavam com elas. Valor da fraude? Pelo menos 2 milhões de reais.

Marina Ramos Brito dos Santos, 33 anos, diarista

“O senador me disse assim: ‘Eu te ajudo e você me ajuda’. Estava desempregada. Meu salário era mais de 14 000, mas topei receber apenas 1 350 reais. A única orientação era para que eu não dissesse ninguém que tinha sido contratada no Senado.”
Marina Ramos Brito dos Santos, 33 anos, diarista

O esquema começou em janeiro de 2016 e funcionou até março deste ano. Sabe-se que cada senador tem direito a uma verba de 280 000 reais por mês para contratar auxiliares. Há pouca ou quase nenhuma

fiscalização sobre o uso desse dinheiro. Essas mulheres que agora admitem a prática foram empregadas como assessoras parlamentares, mas nenhuma delas tinha curso superior

nem qualquer tipo de experiência legislativa. Eram todas pessoas humildes, que mal sabiam onde ficava o Congresso, atraídas pela proposta de ganhar um dinheiro sem precisar trabalhar. Bastava

às candidatas emprestar o nome, o CPF, a carteira de trabalho e atender a uma exigência: manter tudo sob o mais absoluto sigilo. A diarista Marina Ramos Brito conta que ouviu essa proposta indecorosa

da boca do próprio Davi Alcolumbre. Até fevereiro do ano passado, ela ocupou o cargo de “auxiliar sênior” do senador. Além do salário fixo de 4 700 reais, acumulava benefícios, como auxílio-alimentação, auxílio-pré-escolar e até uma curiosa gratificação por desempenho. Somando tudo, os vencimentos passavam de 14 000 reais. Marina, porém, recebia menos de 10% disso.

Erica Almeida Castro, 31 anos, estudante

“Meu salário era acima dos 14 000 reais, mas eu só recebia 900 reais. Eles ficavam até com a gratificação natalina. Na época, eu precisava muito desse dinheiro. Hoje tenho vergonha disso.”

Erica Almeida Castro, 31 anos, estudante.

Eu ficava com apenas 1 350 reais”, conta a ex-assessora a VEJA. “Foi esse o acordo que fiz com o senador”, ressalta. Marina foi contratada em janeiro de 2016. Soube, através de um parente, que poderia ganhar algum dinheiro sem precisar trabalhar. Passando por dificuldades financeiras, não pensou duas vezes. Fez tudo que orientaram, mais o que foi combinado diretamente com o próprio Alcolumbre

A diarista compareceu ao Congresso, apresentou os documentos necessários e abriu duas contas bancárias — uma funcional, para receber o salário, na agência do Banco do Brasil da Câmara dos Deputados,

, e outra pessoal, na Caixa Econômica Federal, em Luziânia (GO), a cidade onde mora. O cartão e a senha da conta funcional foram entregues a um funcionário do gabinete. Era uma troca de favores. “O senador me falou que eu não era capacitada para o emprego, que não tinha curso superior, mas que iria me ajudar. Ele disse assim: ‘Eu te ajudo e você me ajuda’ ”, lembra Marina. Essa parceria se estendeu por quatro anos.

Lilian Alves Pereira Braga, 29 anos, dona de casa

“Eles pegaram meu cartão do banco e a senha. Uma pessoa sacava o dinheiro e dava minha parte na mão. Cheguei a ter um salário de 11 000 reais, mas recebia apenas 800 por mês”
Lilian Alves Pereira Braga,29 anos, dona de casa.

No mesmo dia em que o pagamento dos funcionários do Congresso era creditado, a conta pessoal da diarista em Luziânia recebia a “ajuda” prometida pelo senador — um depósito em dinheiro, que começou com

que começou com 800 e terminou em 1 350 reais, como mostram extratos bancários a que VEJA teve acesso. Simultaneamente, alguém usava o cartão e a senha da conta funcional para sacar todo o salário

da funcionária. A diarista conta que, na conversa com o senador, a única exigência feita foi que ela não comentasse com ninguém os detalhes sobre o novo emprego: “Ele disse para não contar a ninguém os detalhes sobre o novo emprego: “Ele disse para não contar a ninguém em Luziânia que eu tinha sido contratada no Senado”. Tempos depois, Marina lembra que recebeu um pedido para arregimentar cinco mulheres que estivessem desempregadas, precisando de dinheiro e dispostas a fazer o mesmo acordo — de preferência, que tivessem filhos pequenos. Explica-se: o Senado paga um auxílio de 830 reais para cada filho em idade pré-­escolar. Ou seja, os vencimentos embolsados ficariam ainda mais gordos quanto mais filhos a servidora fantasma tivesse.

cada filho em idade pré-­escolar. Ou seja, os vencimentos embolsados ficariam ainda mais gordos quanto mais filhos a servidora fantasma tivesse.

Jessyca Priscylla de Vasconcelos Pires, 29 anos, dona de casa


“Eu retirava o pagamento no banco e entregava a parte deles, para pessoas que o chefe de gabinete do senador indicava. Tinha medo de denunciar isso, mas agora tomei coragem.”
Jessyca Priscylla de Vasconcelos Pires

Mãe de cinco filhos e beneficiária do programa Bolsa Família, a dona de casa Adriana Souza de Almeida topou a oferta e foi contratada como “ajudante júnior” de maio de 2017 a fevereiro deste ano.

O holerite mostra que os vencimentos dela somavam 4 000 reais. “Mas eu só recebia 800 reais por mês”, revela. Ela é empregada de uma fazenda, onde mora com o companheiro e os filhos, diz que esteve

Senado “umas quatro vezes” para levar os documentos, não tem a mínima ideia do cargo que exercia e nem sabe direito por que foi demitida. “Nunca prestei nenhum tipo de serviço para o senador, e também

tipo de serviço para o senador, e também nunca vi ele”, confirma. Adriana foi convidada pela amiga Marina, aceitou a proposta e seguiu à risca as orientações — abriu uma conta-salário na Caixa Econômica

do Senado, repassou o cartão e a senha para um funcionário do gabinete de Alcolumbre e nunca disse nada a ninguém. Os extratos a que VEJA teve acesso mostram, de novo, que tão logo o salário era creditado na conta alguém imediatamente sacava todo o dinheiro. Das seis funcionárias fantasmas, aliás, apenas uma, Jessyca Pris­cylla Pires, se recusou a entregar o cartão e a senha do banco.

Todos os meses, ela sacava o dinheiro na boca do caixa, retirava sua parte, 800 reais, e entregava o restante, cerca de 5 000 reais, a uma pessoa indicada por Paulo Boudens, chefe de gabinete do senador

Desempregada até hoje, Jessyca sobrevive com 253 reais do Bolsa Família. “Tinha medo de denunciar isso, mas agora tomei coragem”, diz ela.

Larissa Alves Pereira Braga, 25 anos, desempregada

“O combinado era que eu não precisava aparecer lá. Eles tinham a senha da conta, o cartão do banco, tinham tudo. O meu salário era de uns 3 000 e poucos reais por mês, mas eu só recebia 800 reais. Para quem estava na pior…”
Larissa Alves Pereira Braga, 25 anos, desempregada.

Entre fevereiro de 2019 e janeiro de 2021, Davi Alcolumbre presidiu o Congresso. É um dos cargos mais importantes da República, o terceiro na linha sucessória de poder. Nesse período, chegou a assumir

interinamente a Presidência da República por três dias, despachou no Palácio do Planalto e comemorou o fato de ser “o primeiro filho do Amapá” a assumir o posto, mesmo que interinamente. A estudante

Erica Almeida Castro já “trabalhava” com o senador durante esse período. Contratada como assessora sênior, com salário que chegava a 14 000 reais, ela recebia apenas 900 reais. O esquema era o mesmo:

duas contas, cartão bancário confiscado, depósito em dinheiro no dia do pagamento. Estudante de contabilidade, Erica é a mais instruída das funcionárias fantasmas de Alcolumbre.

Ela tem noção do que se envolveu, diz que não se orgulha, mas topou entrar no esquema por pura necessidade. “Me arrependo amargamente de ter me envolvido nisso. Na época, eu precisava muito desse dinheiro

mas hoje tenho vergonha”, diz. O contrato da ex-assessora foi encerrado em dezembro do ano passado. Oficialmente, o Senado creditou 11 079 reais na conta dela, referente às verbas rescisórias, mas ela

mas ela não viu um único tostão dessa bolada. Quem ficou com o dinheiro? “Imagino que foram eles, que administravam a conta, tinham o cartão e a senha”, diz a estudante. “Eles ficavam até com a

até com a gratificação natalina”, informa a estudante.

Adriana Souza de Almeida, 36 anos, dona de casa –

“Nunca prestei nenhum tipo de serviço, nunca vi o senador e nem sei quanto eu ganhava. Me pediram para abrir uma conta. Dei a eles a senha, o cartão do banco e recebia 800 reais por isso.”
Adriana Souza de Almeida, 36 anos, dona de casa.

Em muitos lugares do país, a contratação de fantasmas e a rachadinha (quando o funcionário devolve parte do salário) não chegam a ser uma novidade.

Fonte: Veja

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