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Itaperuna 31 de maio de 2024

A doutrina da real malícia como standard garantidor da liberdade de expressão

Julgamento do STF poderá contribuir para diminuir disparidade entre entendimento sobre liberdade de expressão e imprensa

É consenso que as notícias fraudulentas, que tem fake news como nome artístico, são um fenômeno que estão entre os mais complexos e difíceis desafios do século 21. Vimos, nos últimos anos, esse artifício ser o protagonista de escândalos de manipulação em massa da consciência de milhões de cidadãos, potencialmente culminando na destruição da reputação de pessoas ou mesmo na enorme influência, através desse mecanismo fraudulento, em eleições democráticas.

Diante dessa infodemianações do mundo inteiro – inclusive o Brasil – estão empenhadas em criar uma estrutura regulatória que, em tese, poderá resolver ou, ao menos, minimizar os danos causados pela desinformação.

Igualmente importante, porém, é a necessidade de estabelecer que nem toda notícia ou informação equivocada deve ser caracterizada como notícia fraudulenta, sobretudo quando disser respeito a assuntos de interesse público ou sobre figuras públicas. Para caracterização de fake news, de acordo com o professor Gustavo Binenbojm, determinada notícia ou publicação deve não só ser falsa ou equivocada, mas seu autor deve tê-la criado: i) de modo consciente mediante expedientes fraudulentos; e ii) com o objetivo de causar danos a pessoas, grupos ou instituições. O conteúdo de fato não real, inverídico ou impreciso é, portanto, apenas um dos elementos das chamadas notícias fraudulentas.

A discussão teórica sobre quais discursos estão protegidos pelo fundamental direito à liberdade de expressão e quais devem ser reprimidos é um desafio de nosso tempo; ou, dito de outra maneira, há uma enorme complexidade sobre o assunto e uma série de nuances que devem ser observadas no momento da ponderação entre a liberdade de expressão e outros direitos fundamentais eventualmente contrapostos.

Uma dessas nuances diz respeito à legitimidade de se considerar ilícita uma notícia, informação ou afirmação publicada de maneira potencialmente equivocada, mas de boa-fé. A compreensão mais madura sobre esse aspecto ensina que não se deve punir aquele que publica, de boa-fé, opinião, afirmação ou informação, ainda que imprecisa ou equivocada sobre determinado fato.

Em alguns julgados importantes, o STF já havia sinalizado nesse sentido:

“A divulgação deliberada de uma notícia falsa, em detrimento de outrem, não constitui direito fundamental do emissor. Os veículos de comunicação têm o dever de apurar, com boa-fé e dentro dos critérios de razoabilidade, a correção do fato ao qual darão publicidade.”. (STF – Rcl: 18638 CE , Relator: Min. ROBERTO BARROSO, Data de Julgamento: 17/09/2014, Data de Publicação: DJe – 182 DIVULG 18/09/2014 PUBLIC 19/09/2014).

O termo “deliberada” não foi colocado ali por acaso. Isto é, a notícia, ainda que publicada contendo informações parcialmente imprecisas, ou equivocadas só deve caracterizar ato ilícito se o equívoco tiver sido produzido ou publicado de maneira deliberada (ou com presença de “real malícia”).

Um dos principais parâmetros internacionais de ponderação entre a liberdade de expressão e os demais direitos fundamentais é o da “publicação razoável”: mesmo que se tenha provado que uma declaração de fato sobre um assunto de preocupação pública seja falsa ou incorreta, deve ser levada em consideração, ao julgar uma ação judicial, a exceção da “publicação razoável”, também conhecida como due diligence ou boa-fé. De acordo com os melhores padrões, deve-se verificar se, no momento da publicação, as informações disponíveis permitiam concluir razoavelmente que os fatos informados eram verdadeiros ou que a opinião emitida se baseava em fatos verdadeiros.

No mesmo sentido, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH-OEA) sustenta que a imposição de medidas de responsabilidade por alegado abuso da liberdade de expressão deve verificar a existência de “real malícia” na declaração. Noutras palavras, deve ficar caracterizado que o autor da declaração agiu com a intenção de causar dano à reputação de outrem, ou com conhecimento de que as informações disseminadas eram falsas. A CIDH-OEA, no caso Tristan Donoso vs. Panamá, reconheceu que as declarações emitidas por Donoso, apesar de não confirmadas, eram razoáveis à vista da informação disponível à época.

A doutrina da real malícia, finalmente, acabou por ser consagrada, ao menos parcialmente, no Brasil através do histórico julgamento das ADIs 6792 e 7055 ocorrido no último dia 22 de maio, que culminou na fixação da tese segundo a qual “a responsabilidade civil do jornalista, no caso de divulgação de notícias que envolvam pessoa pública ou assunto de interesse social, depende de o jornalista ter agido com dolo ou culpa grave, afastando-se a possibilidade de responsabilização na hipótese de meros juízos de valor, opiniões ou críticas ou da divulgação de informações verdadeiras sobre assuntos de interesse público.”. Vale destacar, além disso, que o julgado definiu que “meros juízos de valor, opiniões ou críticas sobre assunto de interesse público” são hipóteses nas quais fica afastada a “possibilidade de responsabilização”.

Não há como arquitetar direito somente dentro de uma lógica piramidal, sendo necessário o diálogo do direito local com outros ordenamentos. No dia a dia dos tribunais, advogados já utilizam a doutrina da real malícia com base na jurisprudência da CIDH (que é aplicável no Brasil), mas a afirmação desta doutrina pelo STF pode ser um marco sobre a compreensão da liberdade de expressão e de imprensa no país.

Mas nem tudo são flores. Como se pode notar da tese fixada, o STF parece ter restringido a aplicação da doutrina da real malícia a notícias ou fatos publicados apenas por jornalistas. Possivelmente essa limitação se deu por conta dos pedidos formulados pela Associação Brasileira de Imprensa e pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (autoras das ADIs). Naturalmente, porém, acreditamos que a doutrina da real malícia deve ser observada em publicações ou manifestações de qualquer pessoa, seja ela jornalista ou não.

A ausência de uma lei geral sobre liberdade de expressão no Brasil faz com que juízes de todo o país tragam às suas decisões suas posições pessoais (e até morais) a respeito do conflito. Assim, a jurisprudência nos tribunais estaduais se torna incoerente pela variação de entendimento entre os seus órgãos julgadores que tratam do tema. Sendo paradoxal que, após o fim da ditadura militar, seja o Poder Judiciário o ente em que muitos governantes e autoridades públicas em geral pleiteiam censuras. O julgamento do STF poderá contribuir para diminuir tal disparidade entre entendimento sobre o tema liberdade de expressão e imprensa.

Como se pode notar, o principal objetivo deste standard é assegurar que a imprensa (e a sociedade civil em geral) possa desempenhar a sua função de informar, exercer o direito de ser informado e de opinar de forma eficaz e tempestiva. Por fim, é certo que, se o combate às notícias fraudulentas é uma emergência de nosso tempo, a proteção e garantia da liberdade de expressão legítima também é.

LUCAS ANASTÁCIO MOURÃO – Advogado atuante na área de mídia e liberdade de expressão. Especialista em Direito Digital pelo ITS/UERJ. Sócio do Flora, Matheus e Mangabeira Sociedade de Advogados, membro do Observatório da Violência contra Jornalistas e Comunicadores do Ministério da Justiça
DIOGO FLORA – Advogado atuante na área de mídia e liberdade de expressão. Doutor e professor da UERJ. Parecerista ad hoc da ONU para segurança de jornalistas. Sócio do Flora, Matheus e Mangabeira Sociedade de Advogados, membro do Observatório da Violência contra Jornalistas e Comunicadores do Ministério da Justiça
ANDRÉ LUIZ DE CARVALHO MATHEUS – Advogado atuante na área de mídia e liberdade de expressão. Mestre em Direito pela UERJ. Sócio do Flora, Matheus e Mangabeira Sociedade de Advogados, membro do Observatório da Violência contra Jornalistas e Comunicadores do Ministério da Justiça

Fonte: Jota.info

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